DIREITO CONSTITUCIONAL
O QUE ACONTECEU COM O NOSSO JUDICIÁRIO?
Por Raymundo do Prado Vermelho

Há quase cinquenta anos como operador do direito, será razoável fazer breve apreciação da trajetória do Judiciário, nesse período. Sem saudosismo, nos lembramos do tempo em que a figura do magistrado era das mais veneradas, numa sociedade onde o Padre, o Prefeito e o Juiz, invariavelmente, eram as figuras mais proeminentes da comunidade...

Hoje, a partir do Presidente da Suprema Corte o que mais se vê são magistrados serem desrespeitados, quando não, atacados por pessoas dos mais variados extratos sociais, sem que o próprio Judiciário encontre forças para defendê-los. É deprimente.

Muitos fatores contribuíram para esse estado de coisas, a começar por antológica cena, quando na manhã do dia 5 de outubro de 1.988, um astuto Professor de Direito Constitucional, notório Deputado Federal, sob sua emblemática posição de Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, levanta por sobre a cabeça uma brochura de capa verde, dizendo: - “Brasileiros, esta é a Constituição cidadã, que lhes é entregue! Usem-na! Exerçam os seus direitos! Reivindiquem nos tribunais País, exigindo o que lhes é de direito. A sociedade lhes pertence”.

Naquele momento viu-se decretado verdadeiro caos no Poder Judiciário. Sim, porque, indene de dúvida, esse Judiciário não se encontrava preparado para o tsunami de processos judiciais que caiu sobre seus ombros, sendo que os poucos juízes e auxiliares com que contava o Judiciário, naquele momento (como nos anos que se seguiram), não deu conta da avalanche de pedidos a esse Poder encaminhados. Aí se estabeleceu o caos.

Mas, não é só isto. Falando aos que militam em todos os níveis do Judiciário nacional, especialmente àqueles que atuam nas pequenas Comarcas do interior, de entrância inicial, os juízes não esquentam cadeira, nessas Comarcas. Mal chegam, já aviam pedido de remoção (ou promoção), na conformidade da Lei de Organização Judiciária Estadual, procurando sair desses pequenos municípios o mais rapidamente possível. A essa altura, o salutar princípio da identidade física do juiz, vai para o espaço. E, os processos instaurados nessas Comarcas se perenizam na volatilidade da permanência jurisdicional neles estabelecida. Atuo numa Comarca do interior do Paraná, onde me deparei com quatro transferências de juízes titulares, num espaço de menos de um ano!... Os juízes que passaram por essa Comarca não tiveram a oportunidade de validamente despachar em dez por cento dos processos judiciais ali tramitando! Nessas Comarcas, os processos se perenizam em total prejudicialidade ao consumidor de Justiça. Isto não é justo.

Questão de extrema relevância e que precisa ser resgatada no Judiciário nacional é a exigência de o candidato a juiz ter efetivamente exercido a advocacia por, pelo menos, cinco anos, desse candidato se exigindo circunstanciado relatório dos processos judiciais pelo mesmo patrocinado, de modo a aferir do candidato sua visão necessariamente ampla da prestação jurisdicional, na ótica do jurisdicionado, em ultima ratio, o titular do direito. Política de seleção desse jaez valeria muito mais do que exigir do(a)s candidato(a)s extenuantes anos de estudos em cursinhos que mais se preocupam em lhes ensinar as “pegadinhas” nos exames dos Tribunais, aplicadas em testes excessivamente detalhados, cheios perguntas sobre regras de entendimentos jurisprudenciais dum complexo sistema legal, não raro distante da realidade que o candidato irá se defrontar quando da prestação jurisdicional. Esses jovens juízes recém-aprovados nesses concursos, nomeados pelos Tribunais, nem sempre se acham devidamente preparados para dizer do Direito em nome do Estado. Por que seriam tendenciosos ou desonestos? Não. Porque lhes falta a devida maturidade, adveniente da experiência profissional adquirida nos pretórios, grandes Escolas da Vida! Quem faz o Judiciário complicado é o homem. A Ciência do Direito é simples, facilmente cognoscível e extremamente lógica.

Nessa metade de Século objeto destas observações, pudemos ver completamente revirada a chamada Ordem Posta. Já, nos primeiros anos da década dos oitenta, importantes leis ordinárias se viram promulgadas, antes mesmo da Constituição Federal, iniciando verdadeira revolução no sistema legal brasileiro. Entretanto, indene de dúvida, o grande divisor de nosso arcabouço jurídico, foi a Constituição de 1.988, que se num primeiro momento (equivocadamente) foi por alguns chamada de “Carta de Poetas”, imediatamente e de maneira adequada foi percebida como a grande modernizadora da Ordem Jurídica Nacional. Dela derivadas advieram todos os grandes diplomas legais, originais (sistema CDC, Leis Ambientais, etc.), ou reformados, nesses últimos avultando o Código Civil de 2002, que não foi apenas uma andorinha nesse verão.

Nesse contexto, um dos principais diplomas jurídicos nacionais é o do Código de Processo Civil. Neste importantíssimo sistema se vê introduzida profunda reforma. Como cediço, a partir dos anos noventa nosso CPC passou por sucessivas, micro e minirreformas, tendo culminado com a criticada reforma da reforma, empreendida na tentativa de cobrir um corpo pleno de lacunas e deformidades. Entretanto, um dos maiores equívocos cometidos nessa hercúlea missão, foi o ter sido enfocado, nessas reformas, apenas a solução do grave problema brasileiro, sob a ótima dos Tribunais e não para resolver os reais problemas do homem comum, o consumidor de Justiça. O que quero dizer com isto é que, equivocadamente, todas as Comissões de Sábios nomeadas para promover essas “reformas” do CPC, se viram presididas e (mais que isso), fortemente lotadas por magistrados, especialmente das Cortes Superiores. Isto, em si, não é necessariamente um mal. Porém, esta política gerou distorções. É que invadidos pelos pedidos do homem comum (instigado que fora pela Constituição Cidadã), os pretórios desta imensa Pátria se viram abarrotados de processos. Nesse passo, não sem razão sofre o Judiciário enorme desgaste pela antológica “demora no julgamento dos processos”. Para resolver o seu problema, cuidaram os magistrados componentes dessas “Comissões”, de introduzir todas as regras possíveis e imagináveis, no sentido de encurtar os procedimentos da jurisdição, ainda que isto viesse (como de fato veio) em prejuízo do consumidor de Justiça, homem do povo, comum dos mortais.

Agora, quando do aviamento do anteprojeto do novo CPC, mais uma vez se viu criada pela Presidência da República[1] uma Comissão de Alto Nível, composta de dose membros para estudos e apresentação de um anteprojeto de Código de Processo Civil, como constatado, amplamente preenchida por magistrados das mais Altas Cortes (o que em si não é um mal), porém, em detrimento de importantes e reconhecidas figuras do mundo acadêmico, consagrados mestres das Ciências Jurídicas (não componentes do Judiciário), estudiosos que já trouxeram importantíssimos trabalhos ao mundo jurídico nacional e internacional, autores de obras jurídicas de escol. De tudo o que se tem notícia, não se imagina uma proposta de qualquer anteprojeto de lei importante que não tenha saído da lavra dos seus mais expressivos Doutores, como sói acontecer na Alemanha, em França, Itália e tantos outros países, com os quais o Brasil mantém a maior afinidade jurídica.

Outro ponto importante, nesse meio Século p. passado é que nossos Tribunais (parece), assim como que concertadamente, implantaram uma política de modo a criar verdadeiras brigadas de auxiliares da Justiçaexpertos especialmente treinados a detectar nos recursos aviados a esses tribunais, quaisquer falhas porventura existentes, fulminando referidos recursos ante a menor discordância interpretativa ou diminuta equivocidade semântica na hermenêutica da interpretação da regra formal, assim fulminando os recursos numa política interpretativa em que o que passou a ser importante é a forma e não o conteúdo.

Este é um capítulo à parte na Ordem Jurídica brasileira, a sobremodo afetar a jurisdição nacional. Como cediço, nos filiamos ao sistema do Direito Continental Europeu, que para efeito do Direito Comparado, tem como elemento de solução dos conflitos forma completamente diferente do sistema adotado em outros países. Dando como exemplo, a Comunidade Anglo-Americana adota o Sistema da Common Low. Isto significa dizer que nós solucionamos nossos conflitos de forma muito diferente daqueles povos que adotaram o Sistema da Common Low.

Entretanto, consideremos que de um certo tempo até esta parte, apreciável número de Cientistas do Direito brasileiro vêm fazendo suas pós-graduações em importantes universidades norte-americanas, sociedade onde o Sistema da Common Low sofreu apreciável evolução jus filosófico, tendo sido esse sistema elevado a patamar bastante avançado até mesmo para os ingleses, seus criadores. Ora, não é novidade para ninguém que o sistema de solução dos conflitos norte-americano se assenta no chamado leading case, onde casos emblemáticos e que se prestam como paradigmas, servem para nortear tanto ao operador do direito, quanto o aplicador da norma, de modo a aplicar ao caso in concreto a melhor solução do conflito, processualmente encoado.

O sistema jurisdicional brasileiro se assenta na lei, na doutrina e na jurisprudência. Entretanto, como se observa, muitos dos novos Cientistas do Direito brasileiro, se abeberando no Sistema da Common Low, vêm propondo (e conseguindo) introduzir profundas modificações na interpretação da aplicação da lei, nos processos jurisdicionais, quando da solução de nossos conflitos. Isto vem gerando enorme insegurança jurídica, situação que nem sempre tem sido apercebida por renomados Julgadores nacionais, mas, que preocupa o homem comum, consumidor de Justiça. E, não raramente, este fenômeno vem ocorrendo nos cinco estamentos jurisdicionais brasileiros[2].

Sou do tempo em que a Justiça se fazia baseada no Direito Material. Por isso, procurei conhecer da Ciência Jurídica, com Robert Joseph Pothier, Rudolf Von Hiering, Louis Josserand, Friedrich Carl Von Savigny, dentre os doutrinadores do Direito Continental Europeu. Entre nossos doutrinadores, fui buscar conhecimentos em Eduardo Espínola, Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda; Clóvis Bevilaqua, Orlando Gomes (o príncipe dos civilistas brasileiros), o didático e sempre atual, Washington de Barros Monteiro, além do antológico Carlos Maximiliano, com sua obra essencial, a Hermenêutica e Aplicação do Direito, e mais tarde, com Tercio Sampaio Ferraz Jr., com sua Introdução ao Estado do Direito, o que nos dava um seguro rumo, a nortear nossos estudos. Houve um tempo em que o Direito Processual Civil era uma importante ferramenta, mas apenas (e tão somente) uma ferramenta, um caminho, para se chegar ao direito ostentado por seu titular. Nesse tempo, embora presente a álea inerente a qualquer processo, a Justiça era previsível. De todo modo, jamais obscura, hermética, fechada, formalista. O que ouso dizer é que, há meio século, nenhum juiz negaria o direito titularizado por um cidadão comum apenas por questões formais. Em sua sublime missão, entendo que o magistrado, acima de tudo é um intérprete do Direito e um aplicador da norma, e em qualquer circunstância, um importantíssimo Servidor da sociedade politicamente organizada, na construção da Paz Social.

Se me apodarem de saudosista, assumo. Porém, em nome do cidadão comum, homem do povoconsumidor de Justiça, não me conformo com certas decisões de um Judiciário com o qual hoje nos deparamos, assim sustentando na defesa dos menos favorecidos pela sorte. E, em nome desses desvalidos, tenho a ousadia de expressar minha visão, bem como, de pedir mais Justiça.  
 


[1] Porque a Presidência da República (que é um órgão do Poder Executivo), e não o Congresso Nacional (nossa mais alta Casa de Leis) quase sempre tem a iniciativa de nomear Comissão para elaboração de um anteprojeto de lei importante. Seria a tibieza de nosso Poder Legislativo?

[2] Intrepidamente, o Brasil teve a coragem de institucionalizar cinco graus de jurisdição, a saber, 1º grau, os juízes singulares; 2º, os Tribunais Estaduais e os Regionais; 3º, os Tribunais Superiores; 4º grau, nossa Suprema Corte, e 5º grau, o atuante CNJ-Conselho Nacional de Justiça. Pelo menos, institucionalmente, somos um País cheio de Justiça! 

© Copyright 2020 - Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Agência Eleve